quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Lei das urnas – Entrevista do Ministro Carlos Velloso



Carlos Mário Velloso, o mineiro Carlos Mário Velloso chegou ao Supremo Tribunal Federal em 1991 e lá permaneceu durante 14 anos. Neste período, ocupou por duas vezes a presidência do Tribunal Superior Eleitoral. Foi na sua presidência que a urna eletrônica foi implantada, além de ser criada uma comissão de notáveis para propor mudanças na legislação eleitoral. As propostas estão no Congresso e uma delas é a festejada Lei da Ficha Limpa. Velloso faz, no entanto, uma previsão ruim: o Supremo pode impedir a vigência da Ficha Limpa, com base no princípio da anualidade das regras eleitorais. A Corte, segundo ele, tem tradição de não abrir mão de princípios. A entrevista é do jornalista Flávio Penna, para a Revista Viver Brasil.

PARTE I
Em 1996 tivemos a primeira experiência de eleição com urnas eletrônicas. O senhor foi o responsável pela implantação do sistema. Hoje o país, com mais de 150 milhões de eleitores poderia fazer eleição sem esta urna?

Desde 1996 foram mais de 20 eleições, aí considerando os dois turnos, o plebiscito e o referendo das armas, com absoluto sucesso. Eu penso que o brasileiro não aceitaria voltar à urna de papel, sabendo que apuração, com a mão humana, pode ser fraudada.

No início se falou muito em fraudes mas, até aqui nada se provou...

Nestes anos todos, nada se comprovou. Verifique quantos recursos sobre este assunto foram realmente apresentados. Se não foi zero, esteve perto disto. E os que possam ter sido apresentados, foram derrotados no início. A urna eletrônica, que eu chamo de tupiniquim por ser genuinamente brasileira, é absolutamente verdadeira. A fraude é praticamente impossível porque ela não está online, o que, em tese, impede a ação dos hackers. Mas é bom lembrar ainda que a informatização nos permitiu também montar o cadastro eleitoral eletrônico. Até 1986, o cidadão podia ter dois, três títulos pela inexistência de cadastro geral nacional. Hoje, o cidadão tem apenas um título o que foi um grande avanço.

A urna eletrônica deu transparência ao processo de votação, mas não podemos dizer que temos uma representatividade legitimada pelo voto. a legislação eleitoral ainda é confusa, com muitas brechas.

Esta é uma questão que já provocou debates, muitos textos de sociólogos e cientistas políticos. Na República Velha você tinha a ilegitimidade das eleições feitas em bico de pena, mas, por outro lado, havia a legitimidade da representação, porque eles escolhiam realmente os melhores. Era uma eleição quase que combinada. Não se admitia escolher, por exemplo, quem tivesse processo criminal, uma acusação séria contra ele. No império, o imperador escolhia os senadores vitalícios por seus currículos. Então sob este aspecto você tinha a legitimidade da representação, mas a ilegitimidade da escolha. Você hoje tem uma legitimidade muito grande com relação à vontade popular. Os eleitos representam a vontade dos eleitores. Agora, os políticos estão em baixa. Há representantes com fichas sujas. Portanto se indaga se isso seria capaz de macular a democracia brasileira. Eu penso que não. A sociedade brasileira se compõe de gente de todo tipo, não é mesmo? O ex-deputado José Bonifácio me disse que, presidindo as sessões da Câmara Federal, ficava reparando os deputados. Via sentado alguém que cheira a dinheiro. Mais adiante um deputado que se sabe envolvido com o jogo do bicho, mais adiante outros que eram praticamente santos, da melhor ficha. Então o parlamento que o deputado enxergava era a cara do Brasil, que tem em sua sociedade gente boa, santos, mas que tem também... Mas este não é um problema só brasileiro. São questões dos parlamentos de todos os países. Certa feita, em conversa com um empresário norte-americano, ele me disse que lá também acontecem deslizes. Lembrou que após a Constituição de 1787 nas eleições seguintes, e por algum tempo, foram eleitos muitos ladrões de cavalo, que eram os marginais da época. Agora, não apareceu nenhum capitão, nenhum coronel para dizer que não podia. Não, eles souberam pagar o preço. Quando um parlamentar se envolve num escândalo, ele é levado à renúncia, enfrenta processo. Tenho certeza de que nós também vamos avançar, com um processo de depuração.

Nesse contexto entra a Ficha Limpa?

Ela é, sem dúvida, um avanço notável. De forma mais imediata, ela é a manifestação da sociedade, propondo diretamente a lei. De forma mediata ela é, na verdade, uma manifestação do TSE. Quando eu presidi o tribunal pela segunda vez, no biênio 2005/2006, convoquei uma grande comissão para a elaboração de normas na área eleitoral. Eu sempre entendi que é necessário se ter normas mais rigorosas com relação ao processo eleitoral porque temos grande parcela da população formada por analfabetos e semi alfabetizados, facilmente enganáveis. Então é preciso que se tenha normas mais rígidas que impeçam que maus políticos, com fichas pouco recomendáveis, sejam eleitos. Então o TSE elaborou um anteprojeto de lei e encaminhou ao Congresso. Basicamente, o que há na lei, é o que foi proposto pela comissão.

PARTE II

Mas houve, no Congresso muitas mudanças, uma quase descaracterização da proposta inicial.

Não, não houve não. O que está na lei e que pode ser visto como flexibilidade, é na verdade uma garantia ao processo de defesa. Por exemplo, a lei estabelece que o sujeito condenado em segunda estância – ela fala em colegiado – fica inelegível. Veja, depois de condenado, o sujeito ainda tem direito a dois recursos, no TSE ou no STJ, no primeiro caso se a condenação é na Justiça eleitoral ou na Justiça comum, podendo chegar até ao Supremo Tribunal. Agora é possível pedir aos tribunais superiores que sejam conferidos efeitos suspensivos à inelegibilidade. O relator, no tribunal, vai apreciar se o recurso tem procedência, o fumus boni iuris, a fumaça do bom direito. Se encontrar, concede o efeito suspensivo. Isto é o direito de defesa que nossa Constituição consagra.

O país não precisa ter regras mais definitivas de seu processo eleitoral?

A cada eleição surgem novas normas. agora, por exemplo, os políticos se mostram temerosos com as campanhas, por não saberem o que pode e o que não pode. Eu sempre defendi regras claras e definitivas no processo eleitoral. Até 1997 a cada disputa tínhamos legislação nova, geralmente casuística, feita para atender a interesses de grupos. De lá para cá temos lei definitiva, muito embora, no ano da eleição, seja elaborada uma ou outra norma que venha dificultar o processo de campanha. É preciso reconhecer que o TSE tem feito esforços para interpretar e dar clareza a estas normas sobre o que pode e o que não pode. Mas infelizmente temos este problema realmente. Uma jurisprudência solidificada, que se viesse sendo aplicada ao longo dos anos, seria muito melhor. Seria uma garantia de eleições mais tranquilas em relação aos direitos e garantias dos candidatos e dos eleitores. Mas infelizmente temos uma certa variação no que concerne à interpretação das normas. Talvez porque os juízes fiquem na Justiça eleitoral por um breve período, dois, quatro anos no máximo. Isto ocorre mesmo. Mas há quem sustente que a renovação é boa, pois oxigena os trabalhos dos tribunais. Eu, porém, sou mais adepto da segurança jurídica.

A evolução constante das ferramentas de comunicação é uma das dificuldades da Justiça eleitoral. Só como exemplo, é possível controlar a internet?

Na verdade ainda estamos engatinhando no controle da internet. Se você estabelecer proibição para propaganda pela internet, o sujeito põe um comitê no Uruguai, no Japão e de lá, coloca o que deseja na rede. Já me perguntaram se não haveria como coibir o abuso. A solução seria punir o que se beneficiou da propaganda. Mas veja, imagine alguém que não goste de um candidato e resolva enviar de outros países, propaganda deste político, até que ele seja punido aqui. É um risco real este. Então é muito difícil controlar a internet.

O senhor acha que o direito consegue acompanhar a evolução da sociedade?

De um modo geral os fatos costumam andar mais rápido do que o direito. Os fatos costumam dar saltos, o direito não. É por isso que inventaram estas formas de delegação legislativas, como a medida provisória que copiamos da Constituição Italiana, transformando o decreto lei em medida provisória. Mas o andar devagar tem suas vantagens também. Acaba a lei sendo produto de discussão mais ampla por parte da sociedade.

A sociedade enxerga a Justiça como medrosa, incapaz de adotar medidas que atinjam o que se chama de maiores. Os menores seriam então os do povo ou mesmo os ocupantes de cargos de menor relevância na estrutura política. Cassam-se governadores, mas não se pune presidente. O senhor concorda com esta visão sobre o Judiciário?

Não. Ocorre que a Justiça não age ex-officio. Esta é a regra. Eu até acho que a Justiça eleitoral, que tem muito de administrativa, não fica ortodoxamente presa a esta regra, mas como é exercida pelo juiz da Justiça comum, ela acaba se orientando por esta prática e fica dependendo do Ministério Público. Nós temos hoje uma procuradora eleitoral muito corajosa, a doutora Sandra Cureaux, que tem agido. Mas eu acho que poderíamos ir mais adiante. Para mim os abusos configuram, pelo menos em tese, de poder político, de autoridade, que geram cassação de registro. Então, se o Ministério Público fosse mais atuante poderíamos avançar. Eu acredito que havendo a representação, ela seria aceita. A grande maioria dos juízes é independente. Eles agem desde que se propicie a ele os meios e as provas. A Justiça tem que se basear em provas consistentes. O problema é que normalmente as denúncias são do tipo que os advogados chamam de provas entusiasmadas, sem consistência. Aí o juiz acaba tendo que absolver por falta de provas e paga o pato por isso.

O presidente Lula indicou a ampla maioria dos ministros que hoje compõem o Supremo Tribunal Federal. isto indica que vencerá sempre lá?

Não, eu acho que não. A toga é muito pesada. Quando se assenta ali, ele pode até se assentar pensando em ser grato. Mas quem assenta ali tem que manifestar-se de público, com a mídia cobrindo. Vale dizer que o Supremo é como uma arena de leões. O que fraquejar... Ele pode até desejar ser grato, mas acaba se convencendo de que deve ser grato apenas à Justiça. Servir somente à Justiça. Então eu não vejo qualquer problema do Lula estar nomeando nove ministros. Cada um tem sua biografia. Ninguém chega ao Supremo de graça. Então ele não pode, num só caso, emporcalhar esta biografia.

E a pressão popular, funciona?

Depende. Hoje você tem, por exemplo, grande clamor popular da mídia, e até da sociedade pela Ficha Limpa. Mas eu não me surpreenderei se o Supremo determinar a aplicação do artigo 16 da Constituição, que estabelece o princípio da anualidade da legislação eleitoral, impedindo a aplicação da norma nestas eleições. Ele tem tradição de não abrir mãos de princípios. Então não me surpreenderia porque o STF tem uma tradição de independência, sabe repelir o chamado clamor popular. Esse clamor é um perigo, ele leva, muitas vezes, à prática de injustiças. Foi o clamor popular que absolveu um ladrão e condenou Cristo. Pilatos, em função da pressão popular, lavou as mãos e estas mãos acabaram se transformando nas mais sujas da história.

(*) Entrevista extraída da Revista Viver Brasil – Edição 42 – agosto 2010

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